Um levantamento sobre violências contra crianças e adolescentes no Brasil aponta para um cenário preocupante: um aumento significativo nos registros de violência sexual, física e psicológica entre 2020 e 2023. A cada hora, inúmeras crianças e adolescentes são vítimas de diferentes formas de agressão.

O relatório “Violências contra crianças e adolescentes em dados” analisou informações das bases Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e Disque 100.

O Sipia registrou mais de meio milhão de ocorrências no período. O Sinan contabilizou mais de um milhão de notificações entre 2020 e 2022, das quais 444 mil envolviam crianças e adolescentes; e o Disque 100 também recebeu mais de um milhão de denúncias entre 2020 e 2023, sendo meio milhão relacionadas a essa faixa etária.

Principais formas de violência

Os dados revelam que meninas são as principais vítimas de abuso sexual, correspondendo a 84% dos casos no Sipia, 88% no Sinan e 76% no Disque 100. Cada sistema de monitoramento destaca tipos de violência com maior incidência.

A violência sexual é a mais frequente no Sipia, representando 53% dos casos, enquanto a violência física predomina o Sinan, com 44% dos casos. Além desses a violência psicológica é a mais comum no Disque 100, com 59%.

Apenas em 2023, o Disque 100 recebeu uma denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes a cada 17 minutos. O mesmo serviço registrou 53 ocorrências de violência psicológica por hora, enquanto casos de agressões físicas eram reportados a cada dois minutos.

Violência familiar e reincidência

Grande parte das agressões ocorre dentro do núcleo familiar. Segundo o Disque 100, 84% dos casos têm como agressor um membro da família. No Sipia, esse percentual é de 57%, enquanto no Sinan chega a 44%. O medo e a dependência emocional dificultam as denúncias, contribuindo para a subnotificação e a impunidade.

Ana Lúcia Munhoz de Oliveira, advogada e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-PR, destaca a complexidade do problema:

“O medo, a culpa e a dificuldade de romper esses laços fazem com que muitas vítimas permaneçam em silêncio. A maioria das violações acontece dentro do próprio ambiente familiar, que deveria ser um espaço de acolhimento e proteção. Essa dinâmica impõe desafios para a responsabilização dos agressores, pois muitas vítimas têm uma relação de dependência emocional e econômica com quem lhes causa sofrimento.”

Outro fator preocupante é a reincidência da violência. No Disque 100, 90% das agressões físicas e 89% das psicológicas já haviam ocorrido anteriormente. No Sinan, 50% dos abusos sexuais também não foram casos isolados.

Ana Lúcia também chama atenção para a revitimização das crianças no sistema de justiça:

“A necessidade de relatar repetidamente os episódios de violência amplifica o sofrimento da vítima e pode desestimular a busca por justiça. A Lei nº 13.431/2017 foi um avanço ao instituir o depoimento especial e a escuta especializada, mas a falta de estrutura e profissionais capacitados ainda compromete sua plena implementação.”

Caminhos para prevenção e proteção

A análise desses dados é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas que garantam a segurança das crianças e adolescentes. Escolas e centros de atendimento desempenham um papel essencial na identificação e encaminhamento de vítimas.

Para a psicóloga Emmanuele Pereira, é importante ensinar as crianças a reconhecerem limites corporais e evitar segredos com adultos.

“Pais e cuidadores devem estar atentos a reações incomuns das crianças diante de determinadas pessoas, sejam familiares ou não. Criar um ambiente de confiança, onde a criança se sinta segura para relatar situações desconfortáveis, é essencial.”

Para denunciar casos de violência contra crianças e adolescentes, estão disponíveis os seguintes canais:

  • Disque 100 (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania) – anônimo, gratuito e disponível 24 horas por dia;
  • Disque 181 (Polícia Civil) – para denúncias gerais, também anônimo e gratuito;
  • SaferNet (https://new.safernet.org.br/) – para crimes virtuais, como pornografia infantil e aliciamento online.

Conselhos tutelares também podem ser acionados em casos suspeitos.

Ana Lúcia reforça a necessidade de maior articulação entre os órgãos de proteção e a criação de centros especializados para atendimento integral:

“Ambientes onde a vítima possa receber apoio psicológico, jurídico e assistencial em um único local evitam a fragmentação do atendimento e minimizam o trauma da revitimização. A ampliação dos canais de denúncia online também é essencial para facilitar o acesso à proteção.”

Garantir infâncias seguras é um compromisso de toda a sociedade. É preciso denunciar, proteger e promover mudanças estruturais para romper esse ciclo de violência.